Capítulo 2 - Joaquim vai ao parque levando Joca no carro e as preocupações no pensamento
Joaquim construiu uma carreira sólida e era referência na região em sua área de atuação há mais de três décadas. Vivia com a esposa em uma casa muito ampla e bonita, localizada em um bairro tranquilo de Cercanias.
Ultimamente tem ficado cansado com com maior frequência; anda cada vez mais preocupado, e em algumas vezes, nem mesmo sabe por que tanta angústia, tanto aperto no peito.
Ele, que sempre se deu bem com a esposa, há um ano começou a encafifar que ela não gosta mais dele porque as brigas têm aumentado em casa. Na última semana, pela pela primeira vez desde que conheceu a Lia, havia gritado com ela e saído para jogar baralho na sede campestre da OAB Cercanias.
Também, pela primeira vez em 23 anos, ele tinha dormido fora do seu quarto, mesmo estando em casa.
Joaquim vinha tentando aprender a jogar tênis no Cercanias Country Club, mas sua mente continuava ativa, revisando mentalmente tarefas do escritório, prazos tributários e notícias sobre mudanças na legislação. Ele não conseguia descontrair.
-Os torcicolos vão acabar comigo – tem pensado.
Quando não eram dores nas costas e tensão no pescoço, as taquicardias que é que apareciam de repente. Já havia agendado com o cardiologista porque o remédio de pressão não estava mais dando conta. Além disso, andava percebendo uns picos em sua pressão arterial, ultimamente.
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No começo de dezembro tinha sonhando três noites seguidas que a pandemia de coronavírus voltara e que ele não podia trabalhar. Sua família estava passando necessidades e joca, o cachorro da filha, tinha saído para procurar comida no lixo para eles se alimentarem. Acordava suado desses sonhos.
Na semana entre o Natal e o Ano Novo nem iria trabalhar porque não estava conseguindo produzir muito no escritório. Terminava um contrato e depois tinha que mostrar aos colegas, pois ficava cheio de dúvidas se o documento estava adequado ou não. Ele, que sempre fora consultado para validar os documentos para os colegas, agora chegara a tirar uma dúvida até com um estagiário do escritório.
Passara o dia 25 totalmente isolado em casa, tentando falar com a Lia pelo celular, sem ser atendido e, em contrapartida, sem atender às ligações dos amigos.
-Aquela ceia não devia ter acontecido, – pensou.
Terminou de fazer a barba, abriu o chuveiro para uma ducha forte e gelada, então, lembrou-se de que tinha prometido fazer um passeio com joca, o dálmata da Marina, sua filha.
Dr. Joaquim, com um assovio, convidou o joca para um passeio no parque da cidade. E pensar que ele tivera medo do animal quando chegou. Naquela época bastava um latido alto e Joaquim se escondia, com medo de uma mordida.
Marina, que agora estudava medicina na capital, não podia mais conviver tanto com o joca como nos primeiros sete anos de vida dele.
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A evolução do relacionamento entre o joca e o Joaquim contou com a paciência da filha, que tinha enorme interesse em aproximar os dois.
Acontece que o cachorrão da filhinha demandava passeios diários…, e quem faria isso senão “o papis” da Marina?
Assim, Joaquim atendeu ao pedido de Marina e se tornou o passeador oficial do Joca.
Bem, mais ou menos!
Inicialmente, o pedido de Marina era de um passeio diário.
Mesmo com um pouco de dor de consciência, Joaquim resolveu impor os seus limites aos desejos da filha. Definitivamente, esse não era um compromisso que o entusiasmava muito.
O que o animava era o final de um dia de trabalho com pelo menos dez horas de esforço.
O grande troféu eram dez horas de trabalho duro, duas a mais do que seu pai fazia no passado, quando havia previsto para Joaquim um futuro de vagabundagem e consequente miséria.
Agora, ao contrário da profecia do pai, ele era um advogado de renome em toda a região – e até na capital – quando o assunto era direito empresarial.
Não se considerava rico, mas pobre também não era, e, pela quantidade de empresários que vinha favorecendo com seu trabalho, achava-se absolutamente merecedor.
Aquele dinheiro aplicado e rendendo juros em suas contas bancárias era fruto de muito estudo e de muito trabalho.
Em 33 anos de carreira, tinha estabelecido metas e corrido atrás delas para conseguir adquirir o que tinha hoje!
Fizera jus à confortável casa, próxima ao escritório; aos dois bons apartamentos em São Paulo e ao haras, seu novo empreendimento, que também exercia a função de “brinquedão de adulto”, como a Lia gostava de falar.
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Os planos do advogado em relação ao dia em que começaria a aproveitar todos aqueles bens, agora que já estava com 63 anos de vida, incluíam a família, claro.
Estava construindo um patrimônio também pensando na Marina, sua filha querida e na Lia, seu amor de 23 anos.
-Ah, Lia, o que você foi fazer, minha gata – pensou alto o Joaquim, sentindo aquele friozinho na barriga que o deixava louco!
-Justo agora que nós podíamos fazer aquele cruzeiro pelas ilhas gregas que você pedia desde o casamento e que não pudemos fazer uma viagem de lua de mel! – pensou o advogado.
-Já nos casamos com 40 anos, Lia – continuar a remoer, tentando justificar, na verdade, para si próprio. – Achei que esse romantismo todo naquela idade podia atrapalhar o meu trabalho.
-Afinal, na época eu tinha um sócio e se eu desse mole, ficando vinte dias ininterruptos de férias, o cara podia me dar uma rasteira, sei lá! – justificou Joaquim como se a Lia pudesse ouvir sua mente.
Todos esses pensamentos acompanharam o Joaquim até a garagem e persistiram enquanto ele tirava da garagem seu novo carro. Novo, porém bem mais modesto que a SUV importada que a Lia levou embora quando resolveu “sacanear” e sair de casa para “viver um pouco”.
-Acho que ela nem está se lembrando de que já tem 62 anos e está um pouco passada! – pensou, injustamente. Lia era um “pedaço de mulher”, como falavam alguns de seus asquerosos colegas, durante as reuniões sociais da secional da OAB.
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Como o Joaquim não iniciava o passeio, o joca começou a ficar meio ansioso. Então o advogado abriu a porta do seu carro para o cachorro entrar.
Estando o joca devidamente instalado, rumaram ao parque para uma manhã de sol e ar puro.
–Olha a faixa Joaquim, – gritou alguma coisa em seu cérebro, antes que ele quase atropelasse uma mulher grávida que resolveu atravessar a rua pela faixa de pedestres.
A moça caminhava na velocidade em que o barrigão permitia.
O Joaquim estava ruminando a raiva e o ciúme que estava sentindo da Lia, além da incerteza e medo, muito medo, do que aconteceria daqueles dias para a frente na sua vida. Parecia doer por dentro! Ele havia sido traído pelos pensamentos que haviam levado seu cérebro para muito longe de onde seu corpo estava!
–Freia Joaquim – repetiu a voz em seu cérebro.
O advogado esqueceu-se de que aquele “1.0” não tinha câmbio automático, como os carros que vinha dirigindo nos últimos anos e, que interessante, tinha um pedal que acionava um dispositivo chamado “embreagem”, o qual precisaria ser pisado quase ao mesmo tempo que o freio, para que o carro não morresse.
Então, claro, o carro morreu. Não podia ser diferente, a tecnologia ajuda, mas também pune quem não pode comprar o que há de melhor.
Deu dois soquinhos para a frente e morreu, já sobre a faixa de pedestres.
Aquelas grandes listras brancas pareciam a Joaquim as grades de uma penitenciária.
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Uma incontrolável batedeira no coração tomou conta do nosso amigo.
Por segundos, ele chegou a achar que o órgão da paixão e do enfarte se fragmentara, e que os pedacinhos estavam pulsando em diversos pontos do seu corpo.
Devagar e dirigindo toda a atenção para a pista e para a troca de marchas, agora feitas suavemente, o Joaquim e o Joca chegaram seguros ao parque.
Estacionou, um pouco aliviado, mas com uma certa angústia pelo sentimento de culpa por sua negligência no trânsito.
A força do hábito de dirigir sem trocar marchas havia substituído o antigo aprendizado da autoescola ou centro de formação de condutores, como costumavam chamar hoje em dia.
Abriu as portas do carro, liberando a si próprio e ao cão, que desandou a correr pelo gramado em busca do pequeno bosque central.
Antes de se acomodar, o advogado levantou a cabeça e observou a paisagem ao seu redor por alguns segundos.
O parque da cidade tinha um arvoredo circundado por um gramado bem cuidado e esse emoldurado por uma calçada larga, dividida ao meio por cores: uma destinada a pedestres e outra para bicicletas e patinetes.
Joaquim sentou-se em um banco do parque, respirou fundo e murmurou para si mesmo: -Poxa, Lia, viu o que você quase me levou a fazer? E agora não atende minhas ligações – completou, meio desiludido.
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Ao redor da pista, bancos de madeira para duas ou três pessoas, tão confortáveis quanto é possível a um banco de madeira e, atrás deles, pequenas árvores cresciam para, em pouco tempo, projetar sombra à tarde para os frequentadores.
O parque era exemplar, porque sua administração fora entregue a um grupo de moradores apaixonados pela vida ao ar livre, que se organizaram sob a liderança da Heloísa, uma professora aposentada muito respeitada na cidade.
Bem, voltemos ao Joca, porque da última vez que falamos nele, estava em busca de uma sombra no bosque, ou quem sabe, corria pressionado pelas necessidades fisiológicas.
O Joaquim não se preocupou muito com isso. Tirou o celular do bolso e, no exato momento em que flexionou o joelho para se sentar, apareceu uma senhora bem interessante, bem trajada em uma sensual roupa de ginástica e com um olhar determinado.
Joaquim não tinha como saber que a atraente mulher era a Heloísa. Ela vinha com ar de poucos amigos, firmeza no olhar e um saquinho de plástico na mão.
A mulher lhe entregou um saquinho de plástico; Joaquim ficou meio atônito.
Ela apontou para o bosque com o queixo e disse – “isso é para o cocô do seu cachorro!”
Feito isso, a chefe maior e suprema de todos os cuidadores do parque foi, aos poucos, retomando a velocidade ideal da sua saudável e embelezadora corrida matinal.
-Que corpão! – Pensou Joaquim, enroscando o saquinho entre os vãos do banco e pegando o celular.
Ao mesmo tempo, Heloisa pensou – É chato, mas não é de se jogar fora!
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O Dr. Joaquim olhava com atenção para as notícias de microeconomia que chegavam para ele pelo e-mail, mas em pouco tempo seus pensamentos foram abruptamente invadidos pela lembrança de que a festa de Ano Novo seria na sua casa e aconteceria daí a menos de uma semana, com a presença das mesmas pessoas que estiveram na festa da véspera de Natal.
Tinha muita coisa para encomendar e nem tinha começado!
Estava bem empolgado pela perspectiva de receber os amigos queridos para o reveillon, na sua confortável residência. Fizera questão de que a festa de final de ano fosse lá.
Ele esperava poder se redimir do vexame que tinha dado no Ano Novo. –Ranzinza, mal-educado, – criticou-se.
A amiga Joana fora a primeira a receber a notícia de sua separação e dera apoio sincero, embora tivesse um carinho filial pela Lia, a quem admirava e com quem trocava confidências.
Elas eram amigas, mesmo diante da grande diferença de idade entre as duas.
Joaquim lembrou-se do aniversário de Joana, acontecido poucos meses antes, ao qual levou Lia e onde se encontrou com Marina, vinda diretamente da cidade em que estudava.
Lia e Joana saíram várias vezes para caminhar e conversar! O olhar das amigas invariavelmente denunciava uma certa tristeza e apreensão.
Bem que na época bateu uma certa curiosidade em perguntar às duas sobre o que estava acontecendo. Mas ele as conhecia bem! Tinha certeza de que a resposta não seria dada com simpatia e acolhimento: “você sabe o que é amizade fiel, seu chato” e outras conversas nesse nível ou até pior.
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Pronto! Lá estava a Lia invadindo seus pensamentos outra vez!
A Heloísa acabara de aparecer um pouco depois da curva à sua esquerda e vinha se aproximando rapidamente.
A visão da bela mulher do parque resgatou a mente do Joaquim, que havia sido sequestrada pelas lembranças.
Ele fixou os olhos em Heloisa, esperando ganhar um animador sorriso, mas ela não sorriu.
A mulher apenas olhou para ele de forma severa, apontando o indicador da mão direita para o saquinho plástico que estava no banco e o polegar da mão esquerda para o bosque, onde deveria estar o joca ou seus dejetos.
Uma corridinha rápida do Joaquim pelo gramado em direção ao bosque foi interrompida pela lembrança de que precisava de algo para recolher as fezes do animal.
Voltando correndo ao carro, rasgou a última capa de um livro antigo que tinha no porta-malas e retornou para cumprir a ordem da bela mulher madura que o intrigava e atraía seu interesse.
Novamente pegou o celular, mas um turbilhão de pensamentos invadiu sua cabeça.
Isto estava acontecendo cada vez com maior frequência e e isso fazia o Joaquim sofrer.
Ele ficava preocupado com as coisas da família, pensava profundamente no que era possível fazer e achava que tiraria de letra qualquer problema que aparecesse.
Só que depois, os pensamentos voltavam, o sofrimento voltava e ele tentava fugir dos pensamentos.
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Antigamente, ele ligava a TV e ficando olhando para o vazio; depois começou a fazer palavras cruzadas, mas logo enjoou delas. Andava, por último, saindo para jogar baralho com os colegas, voltando tarde e discutindo com a Lia.
Naquele momento, no parque, ele não tinha como fugir dos pensamentos.
Quem mandava na sua cabeça agora era o advogado da Lia.
O moleque, a quem tanto ajudara no início da carreira, não tinha pena, queria uma reunião na semana seguinte, só os dois, para discutir os detalhes da partilha dos bens, inclusive do dinheiro aplicado.
-Como a Lia havia mudado! – Angustiou-se o Joaquim, sem se dar conta de que ele não podia fazer nada para trazer a Lia de volta. Naquele momento ele ficou preso entre o passado, que ele não tinha mais o poder de mudar e o futuro, cuja solução não dependia só dele.
Pensando bem, a esposa já vinha dando sinais de intolerância nos últimos anos:
-“Joaquim, você é apaixonado pelo seu escritório, não pela sua família”;
-“Joaquim, você sabia que faz mais de ano que a gente não janta fora?”;
-“Joaquim, vamos sair só nós dois hoje. Enjoei de ir àquelas reuniões chatas, com seus amigos exibidos e as esposas bonitinhas de corpo e ordinárias de cabeça”.
-Tudo bem, até que ela tinha razão, – disse a si próprio – Eu fiquei meio obcecado pela grana e pelo prestígio.
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-Andei deixando minha família de lado, realmente – recriminou-se Joaquim.
-Lia não ligava muito para o luxo – reconheceu Joaquim, o pensador angustiado.
Uma respiração profunda afastou o advogado do serpentário mental em que se encontrava.
Alguns segundos depois, o seu casamento e a sua carreira voltaram correndo para sua cabeça e dessa vez a lembrança da Lia estava mais poderosa do que a da profissão.
Apesar da paisagem e da tranquilidade do parque, Joaquim se sentia mais cansado do que quando saiu de casa. Parecia ter levado uma surra. Aquela tensão nos músculos dos ombros estava cada vez pior.
A cabeça de Joaquim estava girando em velocidade superior à de naves espaciais, quando Joaquim sentiu um encontrão no encosto do banco em que estava sentado. As duas patas dianteiras do Joca se acomodaram cada uma em um dos ombros dele e o pior foi ouvir, bem de pertinho, o resfolegar do pet da Marina.
O nosso amigo retirou do fundo da alma seu mais escabroso palavrão, mas não o proferiu porque se lembrou do carinho que a filha tinha por aquele cachorro cheio de manchas pretas na pelagem branca.
Depois, até reconheceu que poderia fazer amizade com aquele marginal que, nos últimos dias, era sua única companhia nos finais de semana.
Dessa vez ele se levantou e se postou no meio da pista usada por Heloísa e ergueu a mão direita, como se fosse um guarda de trânsito, daqueles que só se vê em filmes antigos ou quando os semáforos ficam sem energia.
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O dálmata o acompanhou e, na sua linguagem barulhenta, expressou seu desejo de ser apresentado à mulherona que começara a diminuir a marcha e se preparava para parar a poucos centímetros de distância do Joaquim.
-Bom dia – disse ele, – a senhora por favor me perdoe, mas foi um pouco agressiva comigo agora há pouco. Eu acho que mereço respeito. Afinal, além ser um cidadão de boa índole e bastante conceituado, eu sou um idoso.
-Bom, primeiro vou fazer um sacrifício e perdoá-lo porque já estava na hora de parar a corrida – retrucou Heloisa.
-Ser idoso não lhe dá direito de desrespeitar as normas do parque, – continuou a loura Heloisa.
-Oficialmente, eu também sou idosa, pois tenho sessenta anos – continuou. – Por fim, eu quero fazer uma pergunta bem direta: Você é o famoso quem, mesmo?
A ironia da mulher não foi capaz de tirar do rosto de Joaquim a surpresa pelo fato daquela gata já ter atingido a idade em que o IBGE nos classifica como idosos. -Será que aquela “lourice” dela era autêntica ou de salão de beleza? – pensava Joaquim.
Como a cara de Joaquim aparentava mais idiotice do que arrogância, a mulher resolveu continuar a falar.
-Bem, vou me apresentar, que é o que as pessoas educadas deveriam fazer, antes de começar a dizer impropérios a um desconhecido ou, no caso, uma desconhecida.
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-Meu nome é Heloísa Machado e não posso dizer que foi um prazer.
O Joaquim, agora estava perplexo, com as pupilas dos olhos dilatados e continuava mudo. Acusara esse golpe.
Mesmo com Joaquim nas cordas, Heloisa não parava de bater.
-Eu sou professora aposentada do ensino médio, sou uma das fundadoras da “Sociedade Amigos do Parque da Cidade” e ajudo a cuidar dessa preciosidade, que pessoas “importantes” como o senhor (aspas que, certamente a Heloisa colocaria), deveriam valorizar mais e contribuir para sua manutenção.
-Até outro dia,- despediu-se Heloísa, olhando para o portentoso e exibido dálmata.
O Joaquim concentrou-se na corrida quase flutuante da Heloísa, usufruindo dos efeitos do solado moderno de seu tênis de corrida que a fazia levantar, graciosamente uma coxa e depois a outra.
-Que temperamento agressivo!…E que corpão!
Um tanto magoado e com um pouco de inveja do joca, o seu tutor atual voltou ao banco, sentou-se mais uma vez e os seus convidados de fim de ano começaram a se remexer em sua mente.
Joana, aos oitenta e sete anos deveria se resguardar mais – pensou – quando ela vier vou ter uma conversa séria! – murmurou para si mesmo. -Está certo que ela se alegra um pouco com aqueles drinques, mas não cai bem naquela idade e ainda tem o problema do coração.
Depois riu, ao pensar no “cabeça de vento” do Jorge, seu grande amigo. Para Joaquim, o oncologista era irresponsável, pois não conseguia juntar dinheiro e dirigia um carro que vivia dando problema.
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Daí vinha a imagem que Joaquim fazia de Jorge – Médico sem grana! Como alguém pode transformar uma profissão com um potencial tão grande para enriquecer em uma estratégia para ganhar o céu! O cara parece a Madre Tereza de Calcutá.
Preguiçoso ele não podia dizer que o Jorge era. Na verdade, Joaquim apenas lamentava que, já com a idade avançada, o amigo poderia ter algum dinheiro para garantir uma velhice mais folgada.
Trabalhava como louco em um hospital público e ainda fazia campanhas de prevenção ao câncer na periferia da cidade. No fundo, Joaquim reconhecia esse esforço no amigo.
-Sei lá, pode ser que me achem meio egoísta se eu falar em voz alta o que estou pensando – ruminou Joaquim, – mas isso me machuca um pouco, pelo próprio Jorge, que está sempre meio mau vestido e nunca aceita uma ajudinha para dar uma repaginada.
O que irritava Joaquim, de verdade, era o fato de que esses pensamentos traziam angústia extra e faziam sua mente se achar, ora um julgador impiedoso, ora um cara preocupado demais com esse pessoal que nem se tocava com seus conselhos.
-Dane-se o Jorge, pensou –vou atrás do Joca. Já estou ficando enjoado desse parque, desse banco duro, desse sol quente na cabeça, daquela mulher arrogante e até da Lia…Que saco!
Então Joaquim percebeu que Elias, seu sogro, vinha se aproximando, caminhando de forma lenta mas resoluta em direção ao banco em que Joaquim estava sentado.
Imaginou uma bronca e sentiu-se profundamente arrependido pelo comportamento na festa da véspera de Natal. A sua cabeça começou a doer, como se estivesse de ressaca, mesmo sem beber desde o dia em que Lia arrumou uma mala de roupas e saiu de casa.
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Elias chegou, sentou-se ao lado de Joaquim calmamente, como se nem se lembrasse do jantar do dia 24 e falou para Joaquim: – amigo, na minha idade é preciso decretar o fim do chope. Que ressaca – e desatou a rir.
Joaquim, ainda com a cabeça latejando e os pensamentos em turbilhão, apenas resmungou um “É…”. Ele estava tão imerso em sua própria angústia que a leveza de Elias parecia quase um insulto. Sentia-se esgotado, como se tivesse apanhado muito, e a tensão nos ombros era uma prova física de sua batalha interna.
Elias, percebendo o silêncio pesado do amigo, deixou o riso morrer e virou-se para Joaquim, com um olhar que misturava carinho e uma sabedoria tranquila. Ele conhecia Joaquim há décadas, antes mesmo dele se casar com sua filha, e sabia ler as entrelinhas de seus silêncios e a forma como a preocupação se aninhava em sua testa.
— “É”, né, Joaquim? — Elias repetiu, a voz mais suave. — A minha ressaca é do chope, mas parece que a sua não, né? A gente às vezes acorda com uma ressaca da mente, de tanto remoer coisa que já foi ou que nem aconteceu ainda.
Joaquim suspirou, sem olhar para Elias. — Você não faz ideia, Elias. Parece que minha cabeça virou um ninho de marimbondos. Um zumbido constante de “e se…”, “eu devia ter…”, “por que eu não…”. E a Lia… ah, a Lia!
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Elias concordou lentamente, sem interromper. Ele sabia que o Joaquim precisava desabafar, mas também sabia que o desabafo, por si só, não mudaria o ciclo.
— Eu sei, meu amigo. A gente se prende nessas teias de pensamento, não é? — Elias começou, a voz calma e convidativa. — É como se a gente criasse um hábito de se preocupar. A ansiedade, muitas vezes, não é só um sentimento, mas um hábito.
Joaquim finalmente olhou para Elias, a testa franzida. — Hábito? Como assim? Preocupar é um hábito?
— Pois é. Pensa comigo: quando você se sente ansioso, com aquele aperto no peito, aquela angústia… o que você costuma fazer para tentar se livrar disso?
Joaquim pensou por um instante. — Ah, sei lá… Ligo a TV, tento me distrair, faço palavras cruzadas… ultimamente, tenho saído para jogar baralho…
Elias ouviu atentamente e depois comentou:— Exato. E por um tempo, funciona, não é? Você sente um alívio, uma pequena pausa daquele desconforto. O problema é que o nosso cérebro é esperto. Ele associa aquele alívio ao seu comportamento diante do do desafio. Então, da próxima vez que a ansiedade aparece, ele te empurra para repetir o mesmo comportamento.
É um ciclo: primeiro um pensamento ruim ou um fato desagradável; aí você tenta pensar em outra coisa; foge para alguma atividade que gosta de fazer ou liga a televisão; essa fuga traz um alívio na hora. Mas daqui a pouco todo o ciclo começa de novo.
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Joaquim coçou a cabeça. — Mas e o que isso tem a ver com a Lia, com o trabalho, com o Jorge… com tudo isso que me atormenta?
— Tem tudo a ver, meu caro. — Elias se ajeitou no banco, o sol da manhã começando a aquecer. — Quando você pensa na Lia e sente aquela dor, aquela raiva, aquela culpa… o que você faz? Você se afunda mais nos pensamentos, se recrimina, ou projeta nos outros. E isso, por mais que pareça com uma solução, na verdade, está alimentando o ciclo da preocupação. É como se você estivesse tentando apagar um incêndio jogando gasolina.
Elias continuou, a voz ganhando um tom mais reflexivo: — tenho lido bastante sobre isso e sei que em vez de tentar fugir ou lutar contra esses pensamentos e sentimentos ruins, a gente para e observa. “Ah, olha só, estou sentindo essa angústia de novo. Onde ela está no meu corpo? O que ela me diz? O que meu cérebro está me empurrando para fazer agora?” É como se você virasse um cientista da sua própria mente.
Joaquim franziu a testa, pensativo. — Observar? Mas e se eu observar e a coisa piorar? E se eu não conseguir parar de pensar na Lia, ou no meu trabalho?
-Você já ouviu falar de atenção plena? Não é sobre esvaziar a mente, como o Jorge pensou que era a meditação. É sobre estar presente, aqui e agora, com o que quer que esteja acontecendo, sem julgar.
— Sem julgar? — Joaquim repetiu, a voz carregada de ceticismo. — Mas como não julgar? Eu me julgo o tempo todo, Elias! Me julgo por ter gritado com a Lia, por ter deixado a família de lado, por estar com dor na testa, por não conseguir mais trabalhar direito… E julgo o Jorge por ser “Madre Teresa”, a Joana por beber demais…
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Elias colocou a mão no ombro de Joaquim, um gesto de profunda amizade. — É um desafio, eu sei. Mas a ideia é que, quando você se pega julgando, você apenas deveria se atentar: “Ah, olha só, estou me julgando de novo.” Ou: “Estou julgando o Jorge.” E você não se julga por estar julgando. É um ciclo de não-julgamento. É como se você desse um passo para trás e visse seus pensamentos como nuvens passando no céu. Elas vêm e vão. Você não precisa se agarrar a elas, nem lutar contra elas.
— Mas, e se pensamentos não forem? — Joaquim perguntou, a voz quase um sussurro. — E se eles ficarem presos na minha cabeça, como um disco arranhado?
— Eles sempre vão. Nunca é muito fácil, mas a gente tem que insistir. — Elias sorriu, um sorriso que transmitia calma. — O que os faz ficar é a nossa tentativa de controlá-los, de empurrá-los para longe, ou de nos agarrarmos a eles. Não importa o quanto você tente fugir dos seus pensamentos, eles vão com você. A única forma de lidar com eles é encará-los, mas de uma forma diferente. Com curiosidade, com gentileza, sem julgamento.
Elias olhou para o Joca, que estava deitado tranquilamente aos pés de Joaquim, observando o movimento do parque. — Veja o Joca. Ele está aqui, agora. Não está pensando no que comeu ontem, nem no que vai comer amanhã. Ele está sentindo o sol, ouvindo os sons, percebendo o cheiro. A gente, com a nossa mente tão complexa, acaba se perdendo no passado e no futuro.
-Olha sogrão, – apressou-se o Joaquim – estou achando essa conversa meio mole e destinada a fazer boi dormir! Confesso que sou meio reticente a estas soluções “alternativas”.
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— Mesmo assim, tente, meu amigo! Comece devagar — Elias sugeriu, o tom prático. — Quando você cair na teia da ansiedade. Respire fundo. Sinta o ar entrando e saindo. Perceba o seu corpo no banco. Sinta o sol na sua pele.
— É um treino, Joaquim. – disse o Elias. Não é fácil, mas é libertador. É sobre aprender a conviver com as preocupações e incertezas, sem deixar que elas te dominem. É sobre escolher onde você coloca sua atenção. E, acredite, isso faz uma diferença enorme na qualidade de vida.
Joaquim olhou para o Joca, depois para Elias. A dor de cabeça ainda estava lá, mas o zumbido dos marimbondos parecia um pouco mais distante. A ideia de “observar” em vez de “lutar” era um novo caminho que ele nunca tinha considerado.
Elias avisou que iria voltar para a chácara para dormir um pouco e ver se a Eliana estava bem.
-Quem? – assustou-se Joaquim.
-Eliana, a minha filha Lia, sua esposinha querida – disse Joaquim, rindo enquanto se encaminhava para o furgão.
Depois de alguns segundos, Elias se levantou e foi em direção a uma das maiores árvores que estava enxergando. O cachorro o acompanhou.
A sombra das árvores do bosque já conseguia deixá-lo mais confortável e a cabeça dele parecia aliviada a ponto de olhar com mais atenção para o imenso tronco de uma das árvores e tentar imaginar a idade daquela maravilha.
Não sabia até quando ia durar, mas, por enquanto, se sentia melhor.
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VEJA O QUE VEM POR AÍ:
- Como vive a família de Elias e Lia?
- Como atravessaram o luto em plena pandemia de covid?
- Helena, a loura da parque e Lia se conhecem! Será que vai dar ‘B.O’?
- Quem é a Jeanete e que segredos guarda?
- Jorge é mesmo tão “cabeça-fria” quanto parece?