Capítulo 1 – Molhando as palavras e esquentado o Natal
Era véspera de Natal na bela cidade de Cercanias. O restaurante Le Bon Chef estava preparado para receber um grupo de amigos que normalmente se encontrava em algum lugar da cidade para comemorar as festas de fim de ano.
Era um restaurante pequeno, não tinha lá a comida dos sonhos, mas era aconchegante e um dos poucos da cidade que aceitava aquele grupo, cujas festas anuais costumavam ser um pouco barulhentas ao final da noite.
O Le Bon Chef tinha um salão pequeno e decidira fechar para o público, dando exclusividade ao grupo.
O jantar começaria às onze horas da noite para que estivessem todos à mesa na hora da Ceia, que aconteceria à meia noite, quando todos cantariam parabéns a Jesus. Esse fora um pedido do rabugento, mas querido, padre Mércio, muito conhecido na cidade pelo seu conservadorismo e pela revolta que tinha em relação ao fato de o Papai Noel ter tomado o lugar de Cristo na mais importante festa cristã.
Poucos do grupo eram católicos fervorosos e apenas Jeanete costumava frequentar as missas regularmente.
Todos, entretanto, gostavam dos dois padres que costumavam experimentar vinhos um pouco mais fortes do que aqueles que bebiam nos rituais das missas.
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Um dos bares, onde o grupo de amigos costumava se encontrar algumas vezes por ano, ficava na esquina da igreja onde os dois padres cumpriam seus deveres de sacerdote.
Os padres iam até o bar para comprar o vinho, vendido a eles pelo preço de custo, e um tira-gosto de torresmo de barriga de porco, para consumir na casa paroquial.
Embora não se sentassem com o grupo, sempre eram instigados a fazê-lo e acabaram se conhecendo. Padre Júlio era o mais velho e sorridente, enquanto o padre Mércio era sisudo e rigoroso quanto aos dogmas da igreja.
O grupo de amigos era formado, inicialmente, pelos autodenominados “J4”, Jeanete, Joaquim, Jorge e Joana, todos, agora, já avançados na idade.
Eles se conheciam desde que Joaquim tinha oito anos e Joana estava se preparando para entrar na faculdade de medicina na capital. Aos 23 anos, era sua quinta tentativa.
Naquela época, Joaquim era a única pessoa a quem Joana ousava confessar que, ser médica, era um sonho do pai, não dela. Ela sabia que o moleque não entendia direito os desabafos; apenas ouvia com atenção, coisa que não era muito comum na casa da Joana. Como Joaquim ia mostrando fidelidade absoluta aos segredos de Joana, a amizade foi se fortalecendo.
Os outros “jotas”, Jorge e Jeanete, moravam, então, na mesma vizinhança e frequentavam o Parque da Cidade. Aos poucos, esses dois foram se integrando ao grupo e trocando confidências que circulavam apenas entre eles.
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Depois que Joana passou no vestibular de medicina veterinária, para desespero do pai, o grupo começou a se dispersar.
Cada um tomou seu rumo. Jorge, esse sim, fora para a faculdade de medicina. Jeanete queria ser professora, indo estudar letras e Joaquim foi estudar direito, profissão do pai.
Os quatro se formaram e alguns se especializaram. Depois, começaram a voltar a Cercanias para exercerem suas profissões.
Joana foi quem teve a iniciativa de entrar em contato com os outros e há sete anos voltaram a se reunir em uma lanchonete, próxima à catedral, algumas vezes por ano.
Aqueles que iam se casando ou fazendo outras amizades iam agregando essas pessoas aos encontros, os quais levavam a muitas lembranças e outro tanto de garrafas vazias.
Fazia quatro anos que as reuniões de final de ano haviam começado. Uma no Natal e outra no Ano novo.
Todos os membros do “J4” já haviam passado dos sessenta anos, assim como muitos dos amigos.
O seu Elias, sogro do Joaquim, um bem-humorado viúvo de 85 anos, morava em uma chácara um pouco afastada da área urbana.
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Fazia questão de ir aos encontros anuais do grupo, porque se sentira muito bem acolhido por todos, desde que sua esposa morrera atropelada ao atravessar uma faixa de pedestres, alguns anos antes.
O caminho até a chácara do pai de Lia tinha um trecho não pavimentado que vinha apresentando sinais de erosão. O seu Elias achou que poderia chover, ao perceber algumas nuvens escuras. Por isso, resolveu pegar o pequeno furgão que usava para entregar as flores produzidas na chácara e sair mais cedo, para não ter problemas no trecho ruim da estrada.
Chegou umas quatro horas antes do horário marcado para o jantar. Como não sabia onde ficava o Le Bon Chef, foi à praça da igreja e sentou-se em um dos desconfortáveis bancos de concreto da igreja, todos devidamente gravados com o nome dos doadores em seus encostos.
Jorge, agora com 83 anos estava voltando do barbeiro e, ao passar em frente à praça, avistou o Elias, sentado e lendo sob uma luz amarela, cuja luminosidade não era das melhores e, além disso, estava prejudicada pelo voo de algumas dezenas de mariposas.
O médico oncologista estacionou o carro e foi cumprimentar Elias.
O chacareiro produtor de flores resistiu à ideia de esperar a hora da ceia na casa do Jorge. Então este o convidou a dar uma passada no restaurante, pois sabia que tinha uns garçons de plantão, encarregados de manter a mesa já organizada para o jantar.
-Vamos lá fazer “um esquenta de Natal” e depois eu passo em casa só para colocar uma roupa de festa – disse o Jorge.
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-Tudo bem. Vamos lá “molhar as palavras”, aceitou prontamente o antes tímido Elias.
A conversa ia bem até as nove horas. Muitas risadas entre os dois, até que o padre Mércio passou e os viu; ficou irritado por começarem a beber tão cedo em uma data tão sagrada, e resolveu entrar no restaurante reservado.
Jorge estava falando sobre uma amiga que praticava meditação, quando o padre chegou por trás dele e começou a gritar que “aquilo era uma heresia, que meditação, ioga, essas coisas eram doutrinas de religiões pagãs e que isso era um absurdo, principalmente porque o pai de Jorge havia sido um homem tão católico” e outras coisas que os dois amigos não ouviram direito porque o chope estava começando a fazer efeito.
O padre foi saindo do restaurante, mas continuou gritando despautérios.
Os dois amigos, inicialmente, ficaram parados se olhando assustados e depois explodiram em uma sonora gargalhada.
-Coitado do padre Mércio, – disse Jorge, ele é gente boa, mas está cada vez mais ranzinza. Eu ando preocupado com ele. Na última vez que estivemos lá no bar da esquina, ele apareceu e reclamou de dor no estômago, mas ainda não foi procurar o gastroenterologista que eu indiquei, falou.
-Pois é Jorge, tem muita gente culta como o padre Mércio, que tem essa visão errada de meditação, achando que é coisa ligada a religiões orientais.
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Já faz algum tempo que eu tenho lido que hoje em dia ela é praticada no ocidente por pessoas de várias crenças – disse Elias.
Depois de um generoso gole de chope gelado, Jorge retomou a palavra, já um pouco encharcada.
– Eu, particularmente não faço meditação, não por preconceito, mas porque as pessoas confundem um pouco. Usam a meditação para tentar “esvaziar a cabeça dos problemas” como dizem. Esvaziam em um dia, enchem no dia seguinte. Imaginou Elias, se eu esvaziar minha cabeça e deixar de pensar nos meus pacientes e nos casos de câncer que não param de aumentar na nossa cidade? Teria perigo até de eu me esquecer de suas anamneses, o que me deixaria um burocrata da medicina!
-Concordo, em parte, continuou o amigo. Prefiro tratar do assunto do jeito que tenho observado em alguns livros importantes que tenho lido.
-Você tem lido livros de autoajuda, Elias?
-Não. Os que eu tenho lido usam uma estratégia diferente para cuidar da mente das pessoas. Em vez de “esvaziar a mente de problemas” eles propõem encarar os problemas sem medo e sem julgamentos, de forma mais generosa e curiosa.
-Elias, meu caro Elias, mesmo que estivesse sem beber nada de álcool há uns dez anos, nem assim eu entenderia essa aula complexa que você acabou de dar. Pelo amor de Deus, Elias. Isto não é molhar as palavras, isso é uma enchente de palavras que estão rodando na minha cabeça, afogadas em chope.
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-Você está certo, Jorge, vamos amenizar a noite – concordou o amigo.
-Elias, conta aí – é verdade que a sua filha largou do nosso amigo Joaquim?
-Ah, de fofoca você gosta, não é meu chapa!? – ironizou Elias. – Ela está lá em casa, não quis vir comigo e disse que vai passar a noite de Natal sozinha. Ela me proibiu de dizer qualquer coisa para o Joaquim.
Um pouco antes das dez da noite a conversa foi novamente interrompida, dessa vez de forma serena, pelo padre Júlio. Ele pediu uma garrafa de água mineral ao garçom e sentou-se entre os dois amigos.
Nesse momento Jorge se levantou e foi ao banheiro. O mesmo chope que subira agora resolvera descer.
O padre Júlio, então, comentou com Elias que veio a pedido do Padre Mércio, que chegou na casa paroquial nervoso e arrependido por tê-los ofendido. Pedindo desculpas em nome do outro padre, Júlio disse que o seu colega andava ansioso e, cada vez mais, andava agindo por impulso para, quase em seguida, se arrepender profundamente.
Jorge voltou do banheiro enxugando as mãos na calça, olhando intrigado para Elias e para a garrafa de agua mineral vazia.
— Perdi alguma coisa? — perguntou, sentando-se de novo.
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Elias sorriu, olhando para o copo de água que o padre Júlio deixou na mesa:
— O padre Júlio veio aqui para pedir desculpas pelo Mércio. Disse que ele chegou na casa paroquial nervoso, arrependido, ansioso.
Jorge fez um muxoxo, tentando disfarçar um certo incômodo:
— O padre sempre foi meio explosivo, não? Parece que anda piorando. Fico com pena dele. Imagina a cabeça!
Elias se inclinou um pouco, baixando o tom de voz, como quem vai compartilhar um segredo.
— Sabe, Jorge, tem uns psiquiatras bem estudiosos que têm escrito livros que dá para nós, pobres mortais, entendermos. Um deles fala muito sobre ciclos de hábito. Quase sempre, quando alguém faz algo impulsivo, como estourar daquele jeito, é porque está preso num desses ciclos.
Jorge arqueou a sobrancelha, interessado, mesmo sem querer admitir:
— Como assim?
— Veja: o padre Mércio sente algo que o incomoda — como a gente aqui bebendo e rindo ainda tão cedo; – então, imagina que a gente vai ficar de fogo e não vai lembrar da parte espiritual da data…
– Jorge interrompeu – De fogo, eu não vou ficar, já estou ficando…
– Elias continuou – aí entra aqui e ouve a gente falando de meditação como se fôssemos monges do Nepal. Isso desperta nele um desconforto, talvez medo de estar “perdendo o controle sobre o rebanho” ou culpa.
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Elias continuou, – a reação automática é despejar bronca, para aliviar aquela ansiedade de imediato. Só que, depois, bate arrependimento e mais ansiedade ainda. E o ciclo recomeça.
Jorge dá um soluço, pensativo.
O cheiro do restaurante estava convidativo e Jorge percebeu que estava com fome, especialmente ao ver um cozinheiro que entrou assobiando e trazendo um peru assado. O cozinheiro acomodou, cuidadosamente, aquele grande tesouro dourado próximo ao centro da grande mesa da ceia de Natal, deixando lugar para os outros dois que ainda viriam.
Tão logo Jorge percebeu que o cozinheiro voltou ao seu local de trabalho, correu até a mesa, pegou um dos pratos vazios disponíveis e foi em direção ao peru recém-chegado. Sentiu os dedos queimarem um pouco ao pegar a primeira coxa do peru e colocar no prato. Na segunda coxa roubada, os dedos já estavam mais acostumados ao calor.
De posse do prato e sem arrependimento nenhum pela forma estranha que o peru apresentava agora, voltou para a mesa onde estava lambendo cada um dos dedos que pudessem ter o mais remoto sabor da suculenta carne da ave.
Quando Elias perguntou pelo garfo e a faca, Jorge não conseguiu responder porque estava segurando a ponta do osso e abocanhando um pedaço exagerado daquela carne.
Os demais participantes da festa começaram a chegar para a grande noite.
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Joaquim foi o primeiro “sem-álcool” a entrar. Sentou-se ao lado do Elias, com a cara de preocupado que o vinha caracterizando nos últimos dias e, ao invés de desejar boa noite ou bom Natal, foi logo perguntando: -E a Lia não chegou ainda?
-Não, meu genro predileto, acho que ela nem vem – disse o sogro. (ou seria ex-sogro?).
-Claro que vem, daqui a pouco encosta aí com a minha van 4X4 que ela levou – respondeu Joaquim
Elias não falou mais nada, apenas levantou os ombros, como a dizer: – acredite no que quiser.
Joana, que acabara de entrar, passou primeiro pelo balcão e cochichou longamente com o barman, explicando em detalhes o drink com vodca que beberia naquela noite. Depois, sorridente e com uma marcha bem firme e decidida, levando-se em conta os 87 anos que completara há alguns meses.
Deu um beijo no rosto dos ‘meninos’ já sentados e pediu que Elias se levantasse para um abraço mais apertado.
-Depois do abraço Elias disse: continua gatona, hein Joana!?
Ela respondeu prontamente – Continua mentiroso, hein Elias!
Elias e Joana se sentaram bem próximos e começaram a conversar, pois os outros dois ocupantes da mesa estavam um pouco ausentes. mentalmente. Um deles, estava agora agarrado a um generoso peito de peru, para o qual estava mirando uma faca, a fim de que esta e o garfo o ajudassem a cortar a carne branquinha à sua frente.
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Joaquim continuava com a cara ‘amarrada’, pensando em algo que ninguém sabia o que era.
Joana e Elias vinham trocando mensagens pelo celular e e-mails, desde que se conheceram há alguns anos, para falar dos livros que estavam lendo e recomendar outros.
Elias estava contando sobre o stress do padre Mércio algumas horas atrás e a conversa sobre a atenção plena voltou à tona. Os dois tinham lido alguns livros que tratavam do tema e vinham trocando ideias há algum tempo.
Joana parou, ao perceber que Joaquim parecia aéreo e tentou chamá-lo para a conversa: -o que foi Joaquim? Meu amiguinho está triste?
-Elias começou a falar, antes da resposta de Joaquim – o Joaquim está estressado nesses dias…
Com a voz alterada, Joaquim repreendeu de uma só vez os dois velhos amigos; – o que é isso? Vocês querem diagnosticar alguma doença mental. O médico aqui do lado, parecendo um gambá de bêbado e os dois sabidões aí querendo dar uma de psiquiatra agora?
-Nada disso, Joaquim. Estamos falando sobre livros escritos para leigos. Nós apenas gostamos de vocês e queremos que vivam com um pouco mais de qualidade de vida! Mas nunca falamos e nunca iremos falar sobre diagnóstico e nem sobre cura. Não somos psicólogos, não somos psiquiatras; estamos falando como amigos que querem passar à frente o que aprendem de útil.
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Joaquim ouviu, calado, à bronca dada com classe pela Joana
O doutor Jorge, que não tinha essa polidez toda, lançou: – O Joaquim está com dor na testa, veja aí se não está nascendo alguma coisa na testa dele.
Para acalmar os ânimos, entrou Marta, 61 anos, que não era do chamado grupo original “J4”, mas já tinha muito apreço por todos os componentes originais e os posteriormente agregados. Ela começara a frequentar os encontros sociais no bar da esquina, trazida pelas mãos de Jeanete, essa sim, “J4” raiz.
-Oi povo lindo
– falou enquanto chegava para o jantar de Natal. – Já é natal por aqui? Vocês estão maravilhosos como sempre.
Depois que ela cumprimentou a todos e se sentou, Elias perguntou: – e aquela nossa amiga, sua vizinha, a Jeanete, não vem?
Marta informou:
-Amigos, é que de alguns meses para cá, Jeanete anda com um medo terrível de lugares fechados. De qualquer forma, pedi para o Cosme deixar uma poltrona ali na calçada. Caso ela apareça, eu levo algumas comidinhas e bebidinhas.
Ok, disse Joana – vamos tomando nossos lugares à mesa da ceia. Está bonita, vi três perus assados, mas um me parece um pouco estranho. Acho que foi atacado antecipadamente.
Cosme Damião Gonzaga, o garboso proprietário do Le Bon Chef, usando um fraque negro e brilhante à luz, entrou triunfalmente no restaurante para cumprimentar os convidados. Ele parou alguns metros antes da mesa da ceia, olhando atentamente para os ocupantes.
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A Renata, outra convidada, entrou, colocou a mão no ombro do proprietário do restaurante e alertou o Cosme: – Nem pense em chegar lá com a soma das idades dos convidados na cabeça. Essa piada é velha e desagradável.
E, assim, com a ausência de Jeanete, agora sentada do lado de fora do restaurante; de Lia, conforme antecipou o Elias; e do Dr. Jorge, roncando atrás do balcão sobre um colchonete gentilmente cedido pelo barman, Joana como a mais velha daquela velha turma, levantou-se para abrir oficialmente a ceia de Natal do “J4” e agregados.